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O ano de 1945 foi um grande ano. Foi em 45 que, depois de nove
anos de uma guerra que matou milhões de pessoas em todo o mundo, finalmente a
paz voltou a reinar na Terra. Em todos os cantos do planeta as pessoas se
abraçaram e puderam comemorar o final do mais triste episódio da história da
humanidade. Milhares de filhos voltaram para suas casas, famílias se
reencontraram e a construção de um novo tempo começou. Entretanto, em 1945 houve
outro grande acontecimento, que só alguns moradores da pequena vila de Nine
Mile, interior rural da Freguesia de St. Ann (Santa Ana), no norte da Jamaica ,
comemoraram. Foi no dia 6 de fevereiro desse ano que nasceu o menino Robert
Nesta Marley, filho de Cedella Booker, uma garota negra de apenas dezoito anos,
e do Capitão Norval Marley, do Regimento Britânico das Índias Ocidentais, um
inglês branco de 50 anos de idade que, devido a pressões de sua família na
Inglaterra, apesar de ajudar financeiramente pouco conheceu o filho. Mas para
entender melhor a história desse menino é preciso voltar um pouco mais no tempo.
Apesar da escravidão ter sido abolida na Jamaica em 1834, aqueles dias de
sofrimento ainda estão na memória dos descendentes de africanos e, misturados
com os costumes ingleses, fazem parte da cultura da ilha. Já no começo do século
passado a herança africana começava a ter expressão política com Marcus Garvey,
um pastor jamaicano que fundou a Associação Universal para o Desenvolvimento do
Negro. A organização defendia a criação de um país negro, livre da dominação
branca, em África, que recebesse de volta todos os descendentes de africanos
exilados na América. Foi inclusivé com esse intuito que Garvey chegou a fundar
uma companhia de navegação a vapor, a Black Star Line. Mas Marcus Garvey é
lembrado na Jamaica também por outro motivo. O pastor, nas suas pregações,
costumava repetir uma profecia que logo se espalhou entre a população negra. Ele
dizia que em África surgiria um Rei negro, o 225º descendente da linhagem de
Menelik, o filho do rei Salomão e da rainha de Sabá, que libertaria a raça negra
do domínio branco. Anos depois esse rei apareceu. Em 1930 Ras Tafari Makonnen
foi coroado Imperador da Etiópia e passou a se chamar Hailè Selassiè. No mesmo
momento, os seguidores de Garvey na Jamaica passaram a acreditar que a profecia
tivesse sido cumprida e começaram uma nova religião chamada Rastafari. Anos mais
tarde, essa religião seria espalhada pelo mundo através da música de um menino
chamado Bob Marley.
Por volta da década de 50, a capital Kingston era a terra dos
sonhos dos habitantes das zonas rurais da Jamaica. Apesar da cidade não ter
oferecer muito trabalho, multidões dirigiam-se para lá para fatalmente
engrossarem a população das favelas que já cresciam no lado oeste. A maior e
mais miserável dessas favelas era Trench Town (Cidade do Esgoto), assim chamada
por ter sido construída sobre as valas que drenavam os dejetos da parte antiga
de Kingston, foi para lá que Dona Cedella se mudou junto com seu filho no final
dos anos 50. O menino cresceu nesse ambiente junto com outros meninos de rua e,
em especial, seu amigo Neville O’Riley Livingston, mais conhecido como Bunny,
com quem começou a tocar latas e guitarras improvisadas em casa. O som que os
dois garotos faziam era influênciado pelas emissoras do sul dos Estados
Unidosque conseguiam captar nos seus rádios e que tocavam músicas de artistas
como Ray Charles, Curtis Mayfield, Brook Benton e Fats Domino, além de grupos
como The Drifters que tinham muita popularidade na Jamaica. Nessa época, Bob
conseguiu um emprego numa funilaria, mas já tinha a música como grande objectivo
de sua vida. A busca desse objectivo ganhou dedicação exclusiva quando uma
fagulha da solda com que trabalhava queimou-lhe o olho. O acidente não teve
gravidade mas contribuiu para largar o emprego e investir unicamente no
aperfeiçoamento da sua música com Bunny. Eles eram ajudados por Joe Higgs, um
cantor que apesar de já possuir uma certa fama na ilha ainda morava em Trench
Town e dava aulas de canto para iniciantes. Numa dessas aulas Bob e Bunny
conheceram outro jovem músico chamado Peter McIntosh. Em 1962 Bob Marley foi
escutado por um empresário musical chamado Leslie Kong que, impressionado, o
levou a um estúdio para gravar algumas músicas. A primeira delas “Judge Not”
logo foi lançada pelo selo Beverley’s. No ano seguinte Bob decidiu que o melhor
caminho para alcançar o sucesso era em um grupo, chamando para isso Bunny e
Peter para formar os "Wailing Wailers". O novo grupo ganhou a simpatia do
percussionista rastafari Alvin Patterson, que os apresentou ao produtor Clement
Dodd. Na metade de 1963 Dodd ouviu os Wailing Wailers e resolveu investir no
grupo. O ritmo da moda na Jamaica então era o Ska que, com uma batida marcada e
dançante, misturava elementos africanos com o rhythm & blues de New Orleans
e que tinha Clement “Sir Coxsone” Dodd como um dos seus mais famosos
divulgadores. Os Wailing Wailers lançaram o seu primeiro single, “Simmer Down”,
atarvés da Downbeat de Coxsone no fim de 1963 e em janeiro a música já era a
mais tocada na Jamaica, permanecendo nessa posição durante dois meses. O grupo
então era formado por Bob, Bunny, Peter, Junior Braithwaite e dois backing
vocals, Beverly Kelso e Cherry Smith.
Nessa época chegou pelo correio a passagem que Dona Cedella,
que tinha casado novamente e mudado para Delaware nos Estados Unidos, conseguiu
comprar após muito esforço para juntar dinheiro. Ela desejava dar a Bob uma nova
vida na América, mas antes da viagem ele conheceu Rita Anderson e em 10 de
fevereiro de 1966 casaram-se. Marley passou apenas oito meses com a mãe antes de
retornar à Jamaica, onde começou um período que teve importância especial no
resto de sua vida. Bob chegou em Kingstom em outubro de 66, apenas seis meses
depois da visita da Sua Majestade Imperial, o Imperador Hailè Selassiè, da
Etiópia, que trouxe nova força ao movimento Rastafari na ilha. O envolvimento de
Marley com a crença Rastafari também estava crescendo e, a partir de 67, sua
música começou a refletirse nisso. Os hinos dos Rude Boys deram lugar a uma
crescente dedicação às canções espirituais e sociais que se tornaram a pedra
fundamental do seu real legado. Bob, então, convidou Peter e Bunny para
novamente formarem um grupo, dessa vez chamado “The Wailers”. Rita também
começava sua carreira como cantora com um grande sucesso chamado “Pied Piper”,
um cover de uma canção pop inglesa. A música jamaicana, entretanto, havia
mudado. A frenética batida do Ska deu lugar a um ritmo mais lento e sensual
chamado Rock Steady. A nova crença Rastafari dos Wailers os colocou em conflito
com Coxsone Dodd e, determinados a controlar seu próprio destino, os fez criar
um novo selo, o Wail’N’Soul. Mas, apesar de alguns sucessos, os negócios dos
Wailers não melhoraram muito e o selo faliu no fim de 1967. O grupo sobreviveu,
entretanto, inicialmente como compositores de uma companhia associada ao cantor
americano Johnny Nash que, na década seguinte, teria um grande sucesso com “Stir
It Up”, de Bob.
Os Wailers então conheceram um homem que revolucionaria o seu
trabalho: Lee Perry, cujo gênio produtivo havia transformado as técnicas de
gravação em estúdio em arte. A associação Perry / Wailers resultou em algumas
das melhores gravações da banda. Músicas como “Soul Rebel”, “Duppy Conqueror”,
“400 Years” e “Small Axe” são clássicos e concerteza definiram a futura direcção
do reggae. Em 1970, Aston 'Family Man' Barrett e seu irmão Carlton (baixo e
bateria, respectivamente) uniram-se aos Wailers. Eles eram a base da banda de
estúdio de Perry e haviam participado em várias gravações do grupo. Os irmãos
eram conhecidos como a melhor secção rítmica da Jamaica, status que continuariam
pela década seguinte. Os Wailers eram então reconhecidos como grande sucesso na
Caraíbas, mas internacionalmente continuavam desconhecidos.

No verão de 1971 Bob aceitou o convite de Johnny Nash para
acompanhá-lo à Suécia, ocasião em que assinou contrato com a CBS, que era também
a editora do americano. Na primavera de 72 todos os Wailers já estavam na
Inglaterra, promovendo o single “Reggae on Broadway”, mas sem alcançar bom
resultado. Como última tentativa Bob entrou nos estúdios da Island Records, que
havia sido a primeira a dar atenção ao crescimento da música jamaicana, e pediu
para falar com o seu fundador, Chris Blackwell. Blackwell conhecia a fama dos
Wailers e o grupo estava fazendo uma proposta irrecusável. Eles estavam
adiantando 4 mil libras para gravar um álbum e para que, pela primeira vez, uma
banda de reggae tivesse acesso as mais avançadas técnicas de gravação e fosse
tratada como eram as bandas de rock da época. Antes dessa proposta as editoras
achavam que um grupo de reggae só vendia em singles ou compilações com várias
bandas. O primeiro álbum dos Wailers, "Catch A Fire" quebrou todas as regras:
era lindamente embalado e fortemente promovido. Era o começo de um longo caminho
à fama e ao reconhecimento internacional. Embora "Catch A Fire" não tenha sido
um hit instantâneo, o álbum teve um grande impacto na imprensa. O ritmo marcante
de Marley, aliado às suas letras militantes vinham com total contraste ao que
estava sendo feito então. Os Wailers chegaram em Londres em abril de 73,
embarcando numa série de apresentações que mostraria sua qualidade como banda de
shows ao vivo. Entretanto, após três meses, o grupo voltou à Jamaica e Bunny,
descontente com a vida na estrada, recusou-se a tocar na turnê americana. No seu
lugar entrou Joe Higgs, o velho professor de canto dos Wailers. A turnê
americana incluía, além de algumas casas de show, a participação em alguns shows
de Bruce Springsteen e Sly & The Family Stone, a principal banda de música
negra americana do momento. Mas depois de quatro shows ficou claro que colocar
os Wailers abrindo espetáculos poderia ser pouco aconselhável para as atracções
principais. A banda foi então para San Francisco, onde a rádio KSAN transmitiu
uma apresentação ao vivo que só foi publicada em 1991, quando a Island lançou o
álbum comemorativo "Talkin' Blues". Em 73 o grupo também lançou o seu segundo
álbum pela Island, "Burnin", um LP que incluía novas versões de algumas das suas
mais velhas músicas, como: “Duppy Conqueror”, “Small Axe” e “Put It On”, junto
com faixas como “Get Up, Stand Up” e “I Shot The Sheriff” (que no ano seguinte
se tornaria um enorme sucesso mundial na voz de Eric Clapton, alcançando o
primeiro lugar na lista dos singles mais vendidos nos Estados Unidos). Em 74
Marley passou uma grande parte do seu tempo no estúdio trabalhando nas sessões
que resultaram em “Natty Dread”, um álbum que incluía músicas como “Talkin’
Blues”, “No Woman No Cry”, “So Jah Seh”, “Revolution”, “Them Belly Full (But We
Hungry)” e “Rebel Music (3 o’clock Roadblock)”. No início do próximo ano,
entretanto, Bunny e Peter deixariam definitivamente o grupo para embarcar em
carreiras solo enquanto a banda começava a ser conhecida por Bob Marley &
The Wailers. “Natty Dread” foi lançado em Fevereiro de 75 e logo a banda estava
novamente na estrada. A composição harmônica perdida com a saída de Bunny e
Peter havia sido substituída pelas I-Threes, um trio feminino composto pela
esposa de Bob, Rita, além de Marcia Griffiths e Judy Mowatt. Entre os concertos,
os mais importantes foram as duas apresentações no Lyceum Ballroom de Londres
que até hoje são lembradas entre as melhores da década. Os shows foram gravados
e logo o disco, junto com o single “No Woman, No Cry”, estava nas paradas de
sucesso. Em Novembro, quando Marley voltou a Jamaica para tocar num show
beneficiente com Stevie Wonder ele já era obviamente a maior estrela da ilha.
“Rastaman Vibrations”, o álbum seguinte, lançado em 76, atingiu o topo das
paradas americanas e é considerado por muitos a mais clara exposição da música e
das crenças de Bob. O LP incluía músicas como “Crazy Baldhead”, “Johnny Was”,
“Who The Cap Fit” e, talvez a mais significativa de todas, “War”, cuja letra foi
extraída de um discurso do Imperador Hailè Selassiè, nas Nações
Unidas.
Com o sucesso internacional cresceu a importância política de
Bob Marley na Jamaica, onde a fé Rastafari expressa pela sua música alcançava
forte ressonância na juventude dos ghetos. Como forma de agradecimento ao povo
da ilha, Bob decidiu dar um concerto aberto no Parque dos Heróis Nacionais de
Kingston, em 5 de dezembro de 1976. A idéia era enfatizar a necessidade de paz
nas ruas da cidade, onde as brigas de gangues estavam a causar confusão e
mortes. Logo depois do anúncio do show, o governo convocou eleições para o dia
20 de dezembro. Isso deu nova força à guerra no gheto e, na tarde do concerto
atiradores invadiram a casa de Bob e alvejaram-no. Na confusão os atiradores
apenas feriram Marley, que foi levado a salvo às montanhas na cercania da
cidade. Entretanto ele resolveu fazer o show de qualquer maneira e subiu ao
palco para uma rápida apresentação em desafio aos seus agressores. Foi a última
apresentação de Bob na Jamaica por oito meses. Logo após o show ele deixou o
país para viver em Londres, onde gravou o seu próximo álbum,
“Exodus”.
Lançado no verão daquele ano, “Exodus” consolidou o status
internacional da banda, ficando nas paradas da Inglaterra por 56 semanas
seguidas e tendo seus três singles - “Waiting In Vain”, “Exodus” e “Jammin’” -
com grandes vendagens. Em 78 a banda capitalizou novo sucesso com “Kaya”, que
alcançou o quarto lugar na Inglaterra logo na semana seguinte do lançamento. O
álbum mostrava uma nova vertente de Marley, com uma colecção de canções de amor
e, claro, homenagens ao poder da "Ganja". Do álbum foram extraídos dois singles:
“Satisfy My Soul” e “Is This Love”. Ainda em 78 aconteceriam mais três eventos
com extraordinária importância para Marley. Em Abril voltou à Jamaica para o
“One Love Peace Concert”, quando fez com que o Primeiro-Ministro Michael Manley
e o líder da oposição Edward Seaga dessem as mãos em palco, foi então convidado
para ir à sede das Nações Unidas, em Nova York, para receber a Medalha da Paz.
E, no fim do ano, Bob visitou a África pela primeira vez, indo inicialmente ao
Kenya e depois à Etiópia, o lar espiritual Rastafari. A banda havia recém
terminado uma turnê pela Europa e América que rendeu o segundo álbum ao vivo:
“Babylon By Bus”. “Survival”, o nono álbum de Bob Marley pela Island foi lançado
no verão de 1979. Ele incluía “Zimbabwe”, um hino para a Rodésia, que logo seria
libertada, junto com “So Much Trouble In The World”, “Ambush In The Night” e
“Africa Unite”. Como indica a capa, que contém as bandeiras das nações
independentes, “Survival” foi um álbum em homenagem à solidariedade
Pan-Africana. Em abril de 1980, o grupo foi convidado oficialmente pelo governo
do recém libertado Zimbabwe para tocar na cerimônia de independência da nova
nação. Essa foi a maior honra oferecida à banda e demonstrou claramente a sua
importância no Terceiro Mundo. O próximo disco da banda, “Uprising”, foi lançado
em maio de 80 e teve sucesso imediato com “Could You Be Loved”. O álbum também
trazia “Coming In From The Cold”, “Work” e a extraordinária faixa de
encerramento, “Redemption Song”. Os Wailers então embarcaram na sua maior turnê
européia, quebrando recordes de público pelo continente. A agenda incluía um
show para 100 mil pessoas em Milão, o maior da história da banda. Bob Marley
& The Wailers eram a maior banda na estrada naquele ano e “Uprising” estava
em todas as paradas da Europa. Era um período de máximo optimismo e estavam a
ser feitos planos para uma turnê na América na companhia de Stevie Wonder no
final do ano.
No fim da turnê européia Marley e a banda foram para os Estados
Unidos. Bob fez dois shows no Madison Square Garden, mas logo após caiu
sériamente doente. Três anos antes, em Londres, tinha ferido o dedo do pé a
jogar futebol. O ferimento tornou-se canceroso e, apesar de ter sido tratado em
Miami, continuou a progredir. Em 1980, o câncer, na sua forma mais virulenta,
começou a espalhar-se pelo corpo de Bob. Ele controlou a doença por oito meses,
fazendo tratamento na clínica do Dr. Joseph Issels, na Bavária. O tratamento de
Issels era controverso por usar apenas remédios naturais e não tóxicos e, por
algum tempo, pareceu estabilizar a condição de Bob. Entretanto, repentinamente a
luta começou a ficar mais difícil. No começo de maio ele deixou a Alemanha para
voltar à Jamaica, mas não completou a viagem.
Bob Marley morreu num hospital de Miami na segunda-feira, 11 de
maio de 1981. No mês anterior, Marley havia sido agraciado com a Ordem do Mérito
da Jamaica, a terceira maior honra da nação, em reconhecimento à sua inestimável
contribuição à cultura do país. Na quinta-feira, 21 de Maio de 1981, o Honorável
Robert Nesta Marley O. M. recebeu um funeral oficial do povo da Jamaica. Após o
funeral - assistido tanto pelo Primeiro-Ministro como pelo líder da oposição - o
corpo de Marley foi levado à sua terra natal, Nine Mile, no norte da ilha, onde
agora descansa em um mausoléu. Bob Marley morreu aos 36 anos, mas a sua lenda
permanece viva até hoje.
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